Os números não enganam. E os divulgados recentemente pela GNR colocam Faro como o segundo distrito do país com mais crimes de maus-tratos a animais de companhia e entre os cinco onde mais ocorrem crimes de abandono.
Segundo o Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente (SEPNA), entre Outubro de 2014 e 30 de Setembro de 2016, foram registados no Algarve 56 crimes de maus-tratos. Um número, absoluto, apenas superado no distrito de Setúbal, que chegou aos 63, mas onde a população residente quase duplica em relação à região algarvia. Os dados dos últimos Censos, conduzidos pelo Instituto Nacional de Estatística, indicam que há cerca de 850 mil residentes no distrito de Setúbal, mais de 400 mil relativamente ao distrito mais a Sul de Portugal, o que revela que, em termos relativos, o segundo lugar pode ser “simpático” para a região.
Apesar de o relativamente baixo número de denúncias (350, contra as 1.219 registadas em Setúbal, por exemplo), Faro ocupa o quarto lugar em contra-ordenações (753). Ainda assim, contactada pelo POSTAL, fonte da secção SEPNA do Comando Territorial de Faro da GNR assegura que houve um “aumento da sensibilização para a queixa” com a criação da lei que criminaliza maus-tratos a animais, em vigor desde 1 de Outubro de 2014.
Concelho de Loulé é o pior entre os piores
A mesma fonte do SEPNA adianta que, na região, o concelho louletano é onde se registam mais denúncias. Uma realidade vivida diariamente por Liló Kranendonk, há 34 anos presidente da direcção da Associação dos Amigos dos Animais Abandonados, em Loulé, que garante que o panorama “tem piorado nos últimos anos”. “O abandono [dos animais] antigamente acontecia numa altura de férias, agora é o ano inteiro”, lamenta.
Animais presos, “sem as mínimas condições”, em terraços e quintais de habitações são, pela experiência da também co-fundadora do Canil de São Francisco de Assis, em Loulé, os casos que surgem com mais frequência.
Municípios planeiam criação de dois canis
Para tentar inverter esta realidade os 16 municípios do Algarve vão avançar com um estudo económico-financeiro para avaliar a viabilidade da construção de dois canis intermunicipais, um sediado no barlavento, em concelho a definir, e outro no sotavento, em Alcoutim, com capacidade para, pelo menos, 500 animais. “O objectivo é que estes canis satisfaçam toda a realidade do Algarve, completando os que já existem”, afirmou ao POSTAL Jorge Botelho, presidente da AMAL.
“Não queremos que os animais sejam abandonados, mas no caso de acontecer pretendemos ter capacidade para os recolher e ter uma prática de adopção permanente e responsável nas estruturas”, acrescenta.
Aquando do anúncio do projecto, a AMAL referia, em nota de imprensa, que uma das prioridades passa pela “definição de um modelo de gestão intermunicipal adequado para uma estrutura com estas valências e a sua articulação com o movimento associativo de defesa dos animais”. Por sua vez, a Associação dos Amigos dos Animais Abandonados e a PRAVI (Projecto de Apoio a Vítimas Indefesas) Faro, contactadas pelo POSTAL, garantem não ter sido, até à data, auscultadas no processo.
Uma medida que não é bem acolhida por todos
A solução encontrada pela AMAL não é apoiada por Marta Correia, coordenadora da PRAVI Faro, que acusa a comunidade dos municípios algarvios de um “desconhecimento da realidade”. “O que a AMAL pretende fazer são dois depósitos nas extremidades do Algarve que em meio ano enchem, o que rapidamente irá deteriorar o bem-estar animal, que está assente nas normas da DGAV [Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária] e na União Europeia a nível dos centros de recolha oficial”, diz a responsável, que vai mais longe e diz mesmo que os centros em estudo “não respeitam a vida animal”.
Marta Correia acredita que “não será com a construção dos canis que a situação vai melhorar”. “Não é porque vão tirar meia dúzia da rua que o número de queixas vai diminuir”, avisa.
Na opinião das associações sondadas pelo POSTAL, a construção dos dois canis intermunicipais previstos não vai alterar as estatísticas negativas da região, o que acontecia se a estratégia passasse por campanhas de esterilização promovidas a nível local pelas autarquias.
“Tenho de culpar quase todas as Câmaras por não promoverem campanhas de castração”, atira Liló Kranendonk, cuja opinião é partilhada por Marta Correia, que acusa as autarquias de “não terem coragem política para apostar em campanhas de esterilização massiva, cada uma por si, e de criar por si próprias ou duas a duas os seus próprios abrigos-centros”. A responsável observa ainda que são “muito poucos” os municípios com políticas municipais de esterilização.
“A maioria dos concelhos algarvios tem inúmeros animais errantes – tanto gatos como cães – que têm sido suportados durante anos pelos movimentos associativos, que, ainda assim, não conseguem fazer face a tantos animais que têm nascido ao longo das últimas décadas”. Conhecedora desta realidade, Marta Correia mostra-se conformada. “Em relação aos números divulgados pela GNR, não fico nada espantada, a população não está sensibilizada”.
No caso concreto da PRAVI Faro, só no último ano foram recolhidos das ruas cerca de 400 animais abandonados. “Para além de animais espancados, encontramos com muita frequência cachorros dentro de caixotes de lixo. Ainda na semana passada fomos surpreendidos com nove, com cerca de seis semanas, dentro de um saco de plástico junto à estrada”, relata Marta Correia, que garante que a solução para este problema passa pela sensibilização.
“A sensibilização tem de ser feita e a esterilização tem de ser adoptada por cada município. As associações devem ser apoiadas financeiramente para fazerem o seu trabalho, bem como devem ser feitos protocolos com as clínicas e os veterinários municipais. Apostar na promoção da esterilização também é um caminho para que haja cada vez menos colónias de animais abandonados. Se medidas deste género forem consideradas pelas autarquias e pela sociedade em si o número de maus-tratos vai automaticamente diminuir”, considera a coordenadora.
Na lei de 1 de Outubro de 2014 que criminaliza maus-tratos a animais afirma-se que quem, “sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”. As penas podem ser agravadas se o animal morrer ou ficar incapacitado. Quem abandonar um animal pode ser punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias.